A batalha de Maria, que lutou para aprender a ler
Maria nasceu em Sanharó, interior de Pernambuco, em 1931. Em meio ao sertão, as dificuldades de uma terra empobrecida. Castigada pela falta de chuva. De família pobre, a menina mantinha vários desejos. Mas, naquele momento, ser alfabetizada era o maior deles. Ela queria aprender a ler. Um direito básico a qualquer criança deste plano terreno. A intenção era contar histórias ao próprio pai, José Calazans, também analfabeto. Sem saber ler, tinha por costume comprar o que ele chamava de "romances". Na verdade, histórias de Cordel. Depois de adquiridas, pagava a vizinhos para lerem a ele. Sempre foi assim.
Tudo era bastante rústico e difícil nas décadas de 30 e 40. Ainda mais, nos rincões de Pernambuco. Nem mesmo escola, havia por perto. Calazans era casado com Maria Senhorinha. Juntos, tiveram seis filhos. Com o passar do tempo, Calazans decidiu encaminhar os filhos, homens, até uma comadre vizinha. Lá, a missão era ensiná-los a ler. A “professora” sabia pelo menos o “beabá”. Maria, angustiada, não gostou. Queria ela ter a oportunidade em aprender. E, mesmo arrasada, foi proibida. Pelos cantos, ouvia o pai dizer que mulher não tinha que estudar.
Um a um, todos os meninos desistiram das aulas. Com isso, o pai continuou sem ter mais ninguém que fizesse a leitura aos seus cordéis. Mas, destemida, Maria foi a luta e pediu a mãe, que implorasse ao pai, para poder estudar. Afinal, a causa era nobre. Uma filha ler ao pai. E ela conseguiu. Aprendeu tudo muito rápido. A partir daí, iniciou um novo sonho: ser professora.
Atenta e estudiosa, revelou ao neto que, um dos dias mais tristes da vida, foi quando a comadre do sítio vizinho, disse que não precisava mais aprender. Já havia ensinado tudo a Maria. Mesmo desconsolada, ela entendeu. Embora jamais tivesse aceitado aquelas palavras.
Anos depois, Maria conheceu o companheiro, Izaías. Casou e, meses depois, decidiu com ele, abandonar as terras sofridas do Nordeste para, agora, tentar uma nova vida. Desta vez, no fértil solo paranaense. Pras bandas de lá, ouvia-se que o Sul tinha dinheiro jorrando. Primeiro desembarcaram em São Paulo. No entanto, as notícias da colheita do café remeteram o casal ao norte do Paraná. O alvo agora era Maringá. Lá chegando, receberam informações que em Peabiru, seria uma espécie de “terra prometida”. E assim fizeram.
A chegada a Peabiru aconteceu em 22 de abril de 1957. Um livreto bíblico, ainda guardado pela família, revela a data. Enquanto Izaías trabalhava nos cafezais, Maria continuava com o sonho em ser professora. Mas ela nunca conseguiu. Pelo menos, não oficialmente. Aos netos, ela era uma mestre sem igual. E contava histórias como ninguém. A maioria eram narrativas bíblicas ou aventuras de Pedro Malasartes.
Maria e Izaías tiveram 11 filhos, além de outros três abortos espontâneos. Havia uma sina na família. Por mais que caprichassem no nome das crianças, elas eram apelidadas com “Z”, como letra inicial. José ficou conhecido como “Zezinho”. Maria José, “Zezita”. José Carlos era “Zuza”. José Cláudio, “Zeca”. Maria Zelha, “Zezete”. Nelson, “Zico”. Ozias virou “Zizi” e Ozana, “Zaninha”. Quando o antepenúltimo nasceu, a mãe pensou: “quer saber de uma coisa, vai começar com “Z”. Já pra não ter apelido. Assim veio Zildo ao mundo. Que ficou conhecido como Zildo mesmo. Os três primeiros filhos morreram, segundo ela insistia em dizer, devido ao frio do Paraná. Maria odiava o inverno. Ela também teve o filho Sebastião. Foi o único com apelido diferente: “Nê”.
Izaías, sempre na roça, também foi bóia fria e, depois, passou a fazer carvão através de nós de pinho. A grana não era lá essas coisas. Mas era o que tinha. Moravam numa casa em precárias condições, com muitas fendas nas paredes e teto. No inverno, o frio judiava. Por esta razão, Maria dizia ter perdido os primeiros filhos. Para ajudar, capinou sozinha alguns terrenos próximos a sua casa. Lá, plantou mandioca, milho e mamona. A última vendia. As outras serviam no alimento da turma. Dona de um coração maior que ela mesma, também levava sua colheita aos vizinhos com dificuldades. Maria era doce.
A mulher encarava a vida com ternura. E plena felicidade. Principalmente, por estar sempre com a família reunida. Nos anos 80, sem grana para comprar leite, Maria fez um negócio e adquiriu algumas cabras. Elas permaneciam ao lado da casa. E foi com elas que, finalmente, botou leite pra turminha. No fim da vida, a mulher forte mergulhou em uma profunda depressão. Não saía da cama, para nada. Ao mesmo tempo, passou a sofrer por esquizofrenia.
Mas a vida é feita de reviravoltas. Ninguém conhece o próprio destino. Em 2000, um dos netos, Paulo Guerra, passou no vestibular para o curso de História. Sua intenção era também, ser professor. “Naquele dia fui ao quarto dela e contei que eu seria um professor. Orgulhosa, ela se levantou. Foi até a cozinha. Fez café. E sorriu”, disse. Segundo ele, a impressão era que sua felicidade se mostrava através dele. Em realizar um sonho que a avó, definitivamente, jamais concluiu.
Maria queria apenas estudar. Mas ela não pôde. Estudar era coisa pra homem. Mas os “homens” não quiseram aprender. Se recusaram a estudar. Impedida, ela chorou. Queria ser professora. Mesmo não sendo, ensinou filhos, netos, vizinhos, afilhados e conhecidos. Entre as lições, aulas sobre a vida. Ela nunca se lamentou. Contava com orgulho como aprendeu rápido o que a comadre tinha pra ensinar. Maria morreu em 2005, vítima de infarto. Mesmo ano em que o neto colou grau.
O marido de Maria, Izaías, morreu em 2015. Teve complicações após um câncer na próstata. A família continua morando em Peabiru. E é por lá onde guardam com carinho o livreto antigo com histórias da Bíblia. Era com ele que Maria contava suas histórias aos netos e irmãos. Mais que um livro, é um documento. Veio de Pernambuco trazido pela família. Nele também constam escritos de Maria, como as datas da chegada ao Paraná. Assim como do casamento.
O neto, Paulo, continua sendo professor. Com orgulho. Principalmente, por remeter o próprio sonho, ao antigo desejo da avó, Maria, ou “Zezita”, como era chamada – também com as iniciais em “Z”. E, embora tenha vivido como uma verdadeira guerreira, morreu sem concretizar o maior dos desejos: ser uma professora.
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