Dickson Fragoso Veras não conseguiu escrever a própria injustiça

Em 27 de setembro de 1969, dois policiais federais e um civil, foram à noite até a casa do jornalista Dickson Fragoso Veras, na área central de Campo Mourão. Aos 37 anos, ele estava feliz. Havia acabado de distribuir a primeira edição do seu jornal, a Gazeta Popular. Naquele momento, descansava ao lado da esposa e dos três filhos, ainda pequenos. Na tv, assistia ao programa “O Céu é o Limite”, do apresentador Flávio Cavalcanti. Sem maiores explicações, o levaram até a delegacia. Começavam aí, feridas que jamais cicatrizariam.
Ele ainda não sabia, mas era mais uma vítima do cruel Ato Institucional número 5 (AI-5). E foi preso por noticiar um simples pedido de Habeas Corpus, formulado pelo preso político Joaquim Pires Cerveira. Um Major reformado do Exército, denunciado por pertencer à organização clandestina Frente de Libertação Nacional (FLN). Após ser levado, acabou na Polícia Federal de Curitiba. A acusação: subversão. Desesperada e, sem notícias do marido, a esposa, Maria Mantovani, deixou os três filhos em casas de conhecidos. Emprestou uma grana e rumou até a capital.
Lá, foi amparada por uma amiga, Tecla Brezezinski. Em seguida, se dirigiu até a PF. Após muita reivindicação, soube que Dickson estava preso em um cubículo. Incomunicável. Três dias se passaram. Três dias de pavor. Um advogado, conhecido de Milton Luiz Pereira, a ajudou, levando-a até a cadeia. Então, através de um visor da porta de ferro, viu o jornalista. Ele estava com o rosto pálido, enclausurado como um animal acuado. Mesmo tentando, o casal foi impedido em se comunicar.
Ainda mais preocupada, Maria retornou no dia seguinte. Mas foi surpreendida com a notícia de que ele havia sido transferido, agora, à penitenciária do Ahú. Sem demora, marchou pra lá. E o encontrou completamente abatido. Na verdade, escondia o que vinha sofrendo. Ao mesmo tempo em que Dickson estava preso, Maria também passou a estar. Mas presa a uma dor sem fim. Ela não entendia porque o marido estava preso. Não fazia nenhum sentido.
De volta a penitenciária, um dia depois, Maria foi chamada para conversar com um coronel. Lá, num pequeno interrogatório, respondeu algumas perguntas. Então, o militar teria dito: “É melhor que volte a sua casa. Pois poderá não mais encontrar seus filhos e, certamente, seu marido. O jornalista irá pagar pelos seus atos”. “BUUUMM”. Uma bomba nuclear explodiu sobre ela. Aquelas palavras a destruíram. Por inteira. Uma ameaça direta. De um homem fardado. O relato de Maria fez parte de uma ação movida pela família, cujo governo brasileiro, perdeu.
Aflita com as palavras daquele homem, ela conseguiu, mais uma vez, acesso a Dickson. Conversaram sobre a questão. Ele achou melhor que ela voltasse imediatamente a Campo Mourão. O medo era que os filhos pagassem por algo que jamais cometeram. Certa da decisão, Maria deixou o marido e se embrenhou até a rodoviária de Curitiba. Lá, não havia mais lugar na “jardineira”. Como era caso de vida ou morte, aceitaram que viajasse sentada no corredor. Uma viagem de 10 horas.
Dias. Semanas se passaram. Maria não tinha notícias de Dickson. Ela se sentia entre a cruz e a espada. Ou cuidava dos filhos, ou ia até a capital em busca do marido. Acabou enfrentando dias de escuridão. Principalmente, porque os “amigos” desapareceram. E, as condições financeiras dela, e dos filhos, piorava a cada dia. Ao mesmo tempo, segundo a família, o jornalista era torturado. Submetido a sessões de choque, sem comida, vítima de agressões e queimaduras com cigarros.
Acontece que Maria sempre teve fé. Mais de um mês depois, Dickson, surpreendemente, reaparece. Ainda abalado, ele tenta se levantar. Mas acaba descobrindo o óbvio: nunca teve amigos. Os falsos deram as costas. Os verdadeiros, nunca os conheceu. Todos se afastaram, principalmente, por temerem também serem perseguidos pelo governo. Então, na tentativa de ressocializar-se, fez a segunda e última edição da Gazeta Popular. Tinha um motivo: esclarecer de uma vez por todas o acontecido. Mas não adiantou.
Desacreditado e menosprezado, foi obrigado a se afastar do jornalismo. Também não conseguia emprego. Agora, rejeitado e sem condições de sustentar a própria família, foi obrigado a vender o resto de seus móveis. Mudou a Maringá e teve que se reinventar. Passou a atuar em uma empresa de brindes. Na época, alugou uma casa. Tinha apenas um fogão e alguns colchões, jogados ao chão.
Já era 1971. A vida dava sinais de prosperidade. Mas o fantasma retornou. Uma intimação o levou novamente a Curitiba. Lá, mais uma vez foi algemado e preso. Por fim, escoltado até a cadeia de Campo Mourão. Parecia tudo igual, como há dois anos. Como em 69, a família ficou sem notícias. Nem sabiam que Dickson havia sido preso. Com os dias passando, Maria viu o aluguel da casa vencido. Teve que se virar. Começou a vender flores no cemitério de Maringá.
A notícia bomba surgiu dias depois. Foi quando soube que o marido estava mais uma vez detido. Ela seguiu até Campo Mourão e implorou pela sua liberdade. Não conseguiu. Dickson foi removido ao Batalhão de Polícia Militar de Maringá. Foram mais cinco meses em cana. Quando saiu, o jornalista já não era mais o mesmo.
Foi internado com problemas no coração. Estava desestimulado. Sem esperanças. Psicologicamente, não mais existia. Ele jamais admitiu ser “excluído” de Campo Mourão por tamanha infâmia: ser subversivo. A sua prisão também foi relatada no livro “Brasil Nunca Mais”, escrito por uma Comissão de Direitos Humanos do país. Em 13 de janeiro de 1972, Dickson foi absolvido do crime a ele imputado. Mas já era tarde. Ao todo, foram seis meses encarcerado e submetido à tortura. De uma certa forma, para a família, foi a mesma coisa que 30 anos de cana. Em resumo, o jornalista pagou como uma condenação.
Um jornalista injustiçado
Dickson nasceu em 1932, em Araguari, Minas Gerais. Filho de uma professora e de um farmacêutico, cresceu como uma criança normal. Já, na adolescência, mudou com os pais até Cornélio Procópio. Moço, tornou-se mecânico de carros e máquinas pesadas. E foi em Paraíso do Norte, anos depois, onde casou e continuou sujo de graxa. Mesmo em meio aos motores, sempre teve aptidão em escrever. Um dom vindo de outro mundo – ninguém sabe de onde veio. Curioso por natureza, anos mais tarde, já com os três filhos nascidos, decidiu buscar emprego na imprensa. E conseguiu.
No Norte do estado, na década de 60, embrenhou-se na Folha de Londrina. Paralelamente, também atuava em uma revenda de tratores. Bom mecânico, recebeu convite de um conhecido para trabalhar na antiga Comasa, agora, em Campo Mourão. Sua chegada aconteceu entre os anos de 67 e 68, em plena ditadura militar.
Fixado em Campo Mourão, foi convidado a montar o primeiro jornal em 10 de outubro de 68: a Tribuna do Interior – graças a Deus ela existe até hoje. Mas a sua jornada não demorou muito. Desentendimentos ideológicos, com outros sócios, fizeram com que deixasse o impresso. Então, em 69, fundou o segundo jornal: a Gazeta Popular. E já, na primeira edição, por “peitar” a ditadura militar, foi preso, acusado por subversão. Uma fase que, definitivamente, só lhe trouxe prejuízos financeiros e, principalmente, psicológicos.
Prêmio Esso do Jornalismo Brasileiro, em 2004, Renan Antunes de Oliveira disse antes de morrer: “Quando olhar para os lados e ver que está sozinho, sem amigos, é porque se tornou um jornalista de verdade”. No caso de Dickson, a recíproca era verdadeira. Após sair em liberdade, ele estava sozinho. Apenas com a família ao seu lado. Todas as pessoas de seu convívio se afastaram com medo de perseguições, por também temerem ser acusadas de “comunistas”, ou, “subversivas”. “Meu pai foi preso sem nada fazer. Foi injustiçado e judicialmente inocentado. Tanto é que, anos depois, o estado reconheceu em ação judicial que movemos”, lembrou Washington, filho mais velho do jornalista.
Dickson era um gênio da escrita. Polêmico, ia a fundo em suas investigações. Não tinha medo, de nada. Pesquisava, lia, se aprofundava. Jamais saiu sem voltar com a notícia. Nasceu pra isso. Fumante insaciável do Holywood do filtro vermelho, fedia a cigarro. Sua sala, tinha seu cheiro. Acabou tornando-se quase uma figura mitológica, remetida a um personagem do cinema, em telas preto e brancas. Muitos ainda se lembram do jornalista entre a fumaça incessante do cigarro e as máquinas de escrever antigas.
Um deles é o artista plástico Belmiro Santos. Conta que um colega pintor indicou o Jornal Folha do Campo – outro diário criado mais adiante -, como uma possibilidade de emprego. “O interesse meu era pedir um emprego de desenhista ilustrador. Fiquei impressionado com a estrutura física do lugar. Máquinas impressoras mecanográficas, fotomecânicas. Equipamentos que me encheram os olhos”, disse.
Dickson teria sido bastante atencioso. Fez uma pompa. Era o jeito dele. Falante, engrandecia as coisas. Tinha uma terminologia técnica. “Eu só havia visto isso em figuras como ele no cinema. Parecia um personagem de ficção. Fiquei fascinado com tudo aquilo. Ele me passava a ideia de um ator brasileiro num filme meio policial. Tipo Hugo Carvana”, disse. Belmiro lembra que, na recepção ele alertou: "Jamais pergunte a um chefe quanto eu vou ganhar”. No frigir dos ovos, emprego que era bom, nada.
Um ou dois anos depois, em 79, Dickson surge no ateliê do antigo Cine Plaza, onde Belmiro trabalhava. “Antes que eu puxasse meu trinta e oito para me vingar do anjo das máquinas pretas, alguém me disse: ele é um grande jornalista. Está agora trabalhando no O Estado do Paraná. E queria fazer uma reportagem comigo”. Belmiro acabou abafando o “crime”. E como Hugo Carvana, iniciou, numa salinha da sucursal, a bater as teclas, letra por letra, de sua máquina de escrever. “Nunca mais me achei no direito de falar mal do tal, Dickson”, disse Belmiro.
Escritor e cronista, Oswaldo Broza conta que Dickson, ainda no início dos anos 80, trabalhou com ele na sucursal da Folha de Londrina, em Campo Mourão. Atuava como repórter de matérias especiais. “Era um bom repórter. Bom redator. Ia fundo na notícia”, disse. Não ficou muito tempo. Foram apenas alguns meses. “Sei que ele teve participação importante na comunidade, inclusive na criação do Rotary”, lembrou.
Hoje, aos 63, Washington lembra de um pai distante dos filhos. Não por repulsa, apenas pelo trabalho. “Ele vivia o jornalismo. Seu tempo era pra isso”, disse. Em sua visão, o pai era extremamente polêmico e católico. Acreditava em Deus. Era um homem vaidoso, elegante, sempre arrumado, com terno e gravata. Nunca dispensou o bigode, nem o cigarro, tão pouco a bebida. Patriota, defendia seus ideais pensando num país melhor, a todos. Mais que isso, também defendia a liberdade de expressão, de imprensa. Seu desejo era levar informação às claras, em tempos de escuridão. Embora tivesse suas ideologias, jamais se meteu em política.
LIBERDADE
Após sua liberdade e, de volta a Campo Mourão, a repreensão foi muito austera. As consequências foram devastadoras. E terminou no seu afastamento involuntário do jornalismo. Para sobreviver, já que não contava mais, nem ao menos, com os falsos amigos, se reinventou. No começo fez brindes, como chaveiros, para oferecer a empresas. Também criava logotipos pelo dom da criação e excelente desenhista. Além de placas niqueladas com o nome de diretores, médicos, dentistas, colocadas em suas mesas. Até mesmo presépios chegou a fazer. Por fim, mudou para Maringá, exercendo profissões diferentes do que o destino havia oferecido.
Mas, como todo bom filho, ele retornou a Campo Mourão, agora, pela última vez. A verdade é que não conseguiu ficar distante do jornalismo. Era uma espécie de vício – somente quem vive a profissão sabe. Então, em 1978, fundou a Folha do Campo, ao lado de outros dois sócios. O jornal era conhecido por ser “polêmico”, “autêntico”, “sem distorções de opiniões”, além de contar com grande número de leitores. No entanto, mais uma vez, a empreitada não deu certo.
Jamais desistindo, em 1979, Dickson teve espaço no Jornal Estado do Paraná, do Grupo Paulo Pimentel. Logo depois, na sucursal da Folha de Londrina, em Campo Mourão. Ele não sabia, mas ali, já era o final de uma carreira de extrema perspicácia. Com problemas de saúde, médicos recomendaram que parasse. Agora, distante das palavras e de uma ideologia sem fim, Dickson morreu em 15 de julho de 1988, aos 56 anos. Está sepultado no cemitério São Judas Tadeu. Morreu pobre. Não deixou bens. E longe do que mais gostava: escrever.
A Dickson foi conferida uma cadeira na Academia de Letras de Campo Mourão. Anos depois, quem a ocupou foi a Professora Edcléia Aparecida Basso. Ela fez uma pesquisa sobre sua vida. Ao Blog do Ilivaldo, ela constatou: "Dickson, não foi poeta, não brindou o espaço com a lírica, mas teve a palavra, materializada no gênero jornalístico, como bandeira. Seu compromisso com a sociedade foi semear jornais pelo interior do Paraná, que dissessem a verdade, num momento da História do Brasil profanado pela voz do silêncio”.
A verdade é que Dickson era um artista das palavras. E, como tal, não nasceu para lidar com negócios. Tanto é que faliu em quase tudo a que se propôs. A esposa morreu em 2012. Maria foi uma guerreira, lutando pela liberdade do marido e, ao mesmo tempo, pela sobrevivência dos filhos. Embora não tenha sido presa, sofreu o mesmo tanto. Na gíria, comeu o pão que o diabo amassou.
Dois dos três filhos do casal, Washington e Mary, são advogados e continuam em Campo Mourão. Welington, corretor de imóveis, mora no litoral. Mesmo contribuindo à história de uma época bastante conturbada, ainda mais, desafiando a ditadura, a Dickson jamais foi conferida uma homenagem digna. Justa pelo que tanto lutou. Em 1991, na gestão Augustinho Vecchi, uma honra ao mérito foi dada. Ele já estava morto. O papel repousa entre os documentos guardados pela família. Nada mais. Sua memória continua em silêncio. Mas, jamais esquecida.
Quem foi Joaquim Pires Cerveira
Joaquim Pires Cerveira era um brasileiro, Major do Exército, nascido no Rio Grande do Sul. Foi líder de um pequeno grupo conhecido como Frente de Libertação Nacional (FLN). Encontrava-se na Argentina após haver deixado o Chile às vésperas do golpe contra Salvador Allende. Diante das investigações realizadas, conclui-se que foi sequestrado, torturado e desapareceu em ações perpetradas por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964.
Indenização
Em 1998, o Ministério Público do Paraná, através da Comissão Especial de Indenização aos ex Presos Políticos do Estado, deu parecer favorável a uma indenização à família de Dickson Fragoso Veras. Através de relatos e testemunhas, os familiares receberam a bagatela de R$30 mil.
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