Jorge nasceu num campo nazista. E foi salvo por Janina

Jorge é o filho mais velho. Chegou ao Brasil ainda aos cinco anos. Nada se recorda daquele tempo de guerra. Em Campo Mourão, criou sua família e tornou-se agricultor. É um sujeito boa gente, de bem com a vida. Na verdade, um sarrista. Mas, por trás do homem tranquilo, existe uma história de bastante sofrimento. A mãe fez de tudo para que o menino não fosse morto pelas mãos nazistas. Ainda viva, Janina contava que o escondia para que soldados alemães não o vissem. Como um boneco, Jorge era embrulhado com lençóis e colocado sob o colchão. A criança parecia entender. Permanecia em silêncio.
Após o fim da Guerra, parte dos prisioneiros abrigados nos campos de concentração nazistas, conseguiu sobreviver. Os Kiwel estão neste rol. Depois de se reencontrarem, no pós guerra, vieram ao Brasil. Aqui, decidiram pelas terras paranaenses. Deixaram a guerra para encontrar a paz.
OS PAIS
Alfanasi e Janina Kiwel nasceram um para o outro, ainda na década de 20. Foram criados na Polônia em tempos de conflitos e, mesmo assim, conseguiram se casar. Mas, três dias depois do matrimônio, ainda em 1942, transformaram-se em prisioneiros de guerra. Estavam em meio à Segunda Guerra Mundial. Levados para trabalhar forçadamente na zona rural da Alemanha, presenciaram cenas de terror jamais esquecidas. Alfanasi morreu em 2016. Janina, em 2005, vítima de câncer. As lembranças da família, remetem a um passado de pesadelos, torturas, fome e angústias. Revelam a resistência humana diante das atrocidades. Identificam as barbáries de uma raça que se auto mutila. Que, definitivamente, não se respeita.Depois de sobreviverem aos horrores da guerra, os Kiwel chegaram a Campo Mourão e, por aqui, decidiram ficar, até que morressem.
A Segunda Guerra Mundial foi encerrada em 27 de maio de 1945. Mas, ela jamais foi extinta da memória da família. Em 2012, antes de morrer, ele falou com este repórter. Eram histórias que ainda o machucavam. Cicatrizes abertas diante da dor. O destino do casal teve início na década de 40. Depois de se casarem, foram separados e obrigados a trabalhar como escravos em campos de concentração nazistas. Próximo a Berlim, o casal ficou na zona rural. Trabalhavam dia e noite, numa jornada desumana.
Janina já estava grávida e, depois de cinco meses, foi transferida a um hospital-prisão. Principalmente, em função da rejeição militar, por filhos estrangeiros. Em março de 1944, depois do nascimento do primeiro filho, Jorge, Janina evitou que a criança fosse morta por envenenamento de mamadeira. Tratava-se de uma prática comum naquela época: nazistas executando recém nascidos.
FUGA
No campo de concentração, Janina fez malabarismos para esconder o filho. Muitas vezes o escondia debaixo do próprio colchão. Meses depois, o hospital-prisão em que estava foi bombardeado e acabou desmoronando. Centenas de pessoas morreram. Ela e o filho foram soterrados. Jorge estava em seus braços. Apesar de feridos, acabaram vivos. Depois de alguns dias, ela foi removida a outra prisão. Mas conseguiu fugir, levando o filho.
Acompanhada de outra mulher – não se tem informações sobre ela - e, ainda, com a ajuda de anônimos, viajou parte do percurso de trem. Outros 26 quilômetros fez a pé, sem se alimentar, até chegar a colônia onde o companheiro estava preso. No caminho, teve que se esconder diversas vezes de tropas alemãs. Também presenciou bombas caírem ao seu redor. Além de passar sobre dezenas de corpos de soldados mutilados pelo trajeto.
De acordo com Alfanasi, Janina enfrentou muitos obstáculos até chegar ao seu encontro. Além do medo, a fome foi bastante cruel. No percurso, não havia a quem pedir ajuda. Ao contrário. Eram todos, inimigos. Não havia água, muito menos, comida. E, a sua preocupação, naquele momento, não era mais com ela. Mas sim, com o próprio filho. Janina fez o impossível para que os dois sobrevivessem. E ela foi destemida. Uma leoa em defesa da cria.
BRASIL
Alfanasi era um sobrevivente da guerra e do tempo. Ao lado dos filhos, ele era, possivelmente, até, 2016, o último de seus descendentes a estar vivo. Segundo relatos, toda a sua família polonesa foi morta na Guerra. O casal veio ao Brasil em 49, junto com outros dois mil foragidos enviados pela Cruz Vermelha. Polonês, ele chegou a Campo Mourão nos primeiros dias de 1950, ao lado do filho, Jorge, e de Janina. Em terras paranaenses, o casal trabalhou como colono, garantindo o primeiro emprego na Fazenda de Pedro Parigot. Ele lembrou que se tratava de um país estranho, com costumes diferentes e uma língua esquisita. Foi um recomeçar tão difícil quanto o medo de uma nova guerra.
Anos depois trabalhou como operário em grandes construções, como na Usina Mourão e do Hotel Santa Maria. Já habituados com a poeira vermelha da região, os Kiwel tiveram o segundo filho, Antônio. Com ele, cinco netos, além de outros seis bisnetos. Mesmo sem gostar de relembrar o período de conflito, Atanásio recordou o sofrimento da alimentação quando ainda era prisioneiro. A condição se resumia a comida ruim, de péssima qualidade. Por este motivo passou muita fome. Perdeu peso. Ficou no osso.
Ao mesmo tempo, testemunhou milhares de pessoas morrerem por inanição. Eram 100 gramas de pão de manhã. Beterraba com casca de batatinha com terra e tudo. E sopa no almoço e janta, recordou. A “suntuosa” ceia era servida num campo de concentração, onde mais de cinco mil pessoas se amontoavam. Muitos debilitados e, aos poucos, morrendo por falta de alimentação. Aqueles que ainda tinham condições de andar, eram obrigados a cavar suas próprias covas. Valetas à própria morte. Em frente aos buracos, eram metralhados. "Vi muito sangue correr naquela colônia, revelou Kiwel.
Alfanasi morreu de infarte, em outubro de 2016, aos 93 anos. Criou seus dois filhos e dizia ter se tornado um dos maiores adoradores desta terra. Sempre trabalhou como operário da construção, mais especificamente, como carpinteiro. Antônio, o filho mais novo, aposentou-se no ramo da telefonia. Hoje também possui uma pequena propriedade. Trata-se de um gentleman. Sempre foi zeloso com o velho pai. Agora, sem os pais, Jorge e Antônio continuam a saga dos Kiwel. A família sobreviveu à guerra e escolheu Campo Mourão para encontrar sua liberdade. E quem sabe, o alívio à alma.
Esta reportagem é uma homenagem a Janina (12/09/1924 – 23/02/2005) e Alfanasi Kiwel (15/01/1923 – 30/10/2016), assim como a todos os seus descendentes. Além deles, a todas as demais pessoas que passaram pelos os horrores da Segunda Guerra Mundial. Que a história, nos ensine a fazer história.
HISTÓRIA
Entre 1933 e 1945 a Alemanha nazista construiu 20 mil campos de concentração para aprisionar milhões de vítimas. Os campos eram utilizados para várias finalidades: campos de trabalho forçado, campos de transição, e como campos de extermínio construídos principalmente, ou exclusivamente, para assassinatos em massa. Desde sua ascensão ao poder, em 1933, o regime nazista construiu uma série de centros de detenção destinados ao encarceramento e à eliminação dos chamados inimigos do estado.
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