Manoela e a própria tragédia pessoal
Conhecida pela alegria e imponência nas ruas de Campo Mourão, ainda nos anos 90 e 2000, o mundo de “Manoela” desmoronou. Problemas de saúde a aprisionaram e a felicidade desapareceu. Para piorar, vive na escuridão, a mercê da ajuda de outros
Dilmércio Daleffe
Nos anos 80, 90 e 2000, “Manoela” era muito conhecida em Campo Mourão. Foi uma das primeiras, senão, a primeira travesti da cidade. E ganhava a vida na área central, através de programas sexuais. Mas já, há algum tempo, está sumida. O que ninguém sabe é que “Manoela” está bastante debilitada. Há cinco meses perdeu a voz. E há pelo menos quatro, se locomove com muita dificuldade. Devido aos problemas, fica em sua casa, no Jardim Modelo. Saindo apenas para retirar a aposentadoria. Ou parte do que restou dela.
Este repórter a visitou durante a semana. E pode comprovar que “Manoela”, definitivamente, não está bem de saúde, vivendo ainda em estado de miséria. Situação bem diferente de décadas passadas quando, segundo ela mesma, andava com os bolsos cheios. E nada a faltava. Desde 2008, mora numa casa própria, de alvenaria, contemplada pela Cohapar. Mas ali, o verdadeiro sentido da palavra “casa”, não existe mais.
O telhado virou uma peneira. As paredes sujas, dão ar de abandono. Portas foram roubadas. O banheiro conta apenas com uma privada, e está sem azulejos, pia e chuveiro. E, se antes mantinha geladeira, fogão, gás, e armários, nada mais existe. Tudo foi levado. A residência está completamente vazia. Um oco. Com exceção de dois velhos e surrados colchões, onde dorme. Nem mesmo roupas sobraram. A que possui, está em seu corpo.
Segundo amigos, a água foi cortada há semanas. E a luz, há mais de um ano. Não é errado afirmar que “Manoela” vive na escuridão. E, não fossem os poucos amigos e vizinhos, nem comida ela teria. “Sem conseguir mais andar, todos os dias alguém leva uma marmita”, confidenciou um morador próximo. Como não fala mais, as informações foram captadas através dos vizinhos. E do irmão, Dário, que mora em Goioerê.
Segundo ele, ainda na infância, “Manoela” era Genival e teve uma vida normal, como a todas as crianças da época. Concluiu o primeiro grau e fez parte do segundo. Também trabalhou colhendo algodão, ainda aos dez anos de idade. E foi neste período em que a família descobriu que, na verdade, Genival era “Manoela”. “Eu lembro que a minha mãe me ligou um dia chorando, dizendo que ele era gay. Aceitamos. Nunca fomos contra a sua opção”, lembrou.
CAMPO MOURÃO
Em 1988, “Manoela” deixou a família, em Goioerê, para viver em Campo Mourão. Desde então, nunca mais voltou. Nascida em 64, chegou à cidade aos 24 anos. E, numa sociedade preconceituosa, por óbvio, comeu o pão que o diabo amassou. Não foram poucas as vezes em que passou por humilhações e constrangimentos. Mas, precisando de um emprego, aceitou a jornada como saqueiro em uma antiga empresa da cidade. Carregava sacos de 70 a 80 quilos de algodão nos ombros. Manoela” insiste em dizer que isso nunca aconteceu. Mas o irmão confirmou o trabalho.
Edvaldo Ferreira, mais conhecido como “Baiano”, trabalhou com Genival na antiga Algolim. Hoje, aos 71 anos, continua próximo da amiga “Manoela”. “Ficamos amigos lá. Sempre foi uma excelente pessoa. E é por isso que continuo vindo à casa dela”, disse.
Após deixar o trabalho de saqueiro, Genival saiu de cena, dando espaço para sempre à, agora, “Manoela”. Com forte personalidade, adotou as ruas como uma oportunidade de emprego. E nos programas sexuais, construiu o pouco que tinha. Pelo menos, até ser roubada. Por completo. Amiga dos tempos da praça São José, Ivone também continua a auxiliando. Morando próxima, no mesmo bairro, ela a ajuda com alimentos e, vez ou outra, a leva até o centro da cidade.
Ivone conta que “Manoela” possui um coração enorme. E por esta razão, muitas pessoas passaram a se aproveitar. “Teve gente que apareceu do nada e passou a morar com ela. Fazendo até empréstimos em seu nome. Hoje ela recebe metade da aposentadoria por causa disso”, disse.
A amiga de longa data também está preocupada com o seu estado de saúde. De acordo com ela, desde que perdeu a voz e parte dos movimentos da perna, “Manoela” nunca procurou um médico. E a sua fraqueza, parece aumentar a cada dia. Possivelmente, um dos reflexos da falta de condições sanitárias da casa onde reside. Nem água ali existe. Aos 59 anos, “Manoela” se sujeita a tomar banho com uma velha caneca. “Eu acredito que ela esteja com uma profunda depressão. Durante nossas conversas ela sempre começa a chorar”, diz a amiga.
Há pelo menos dez anos, “Manoela” era vista no centro de Campo Mourão bem vestida. Usava saltos enormes, escandalosos, e bolsas brilhantes, à base de lantejoulas. Ivone lembra que as duas batiam ponto juntas. E que a vaidade de uma, como da outra, eram iguais. “Não consigo acreditar que toda aquela vaidade se transformou nisso que você está vendo. Eu tive que dar essa camiseta – da seleção brasileira - pra ela sair hoje. Nem roupas ela tem mais”, disse Ivone. Há alguns dias, Ivone precisou barbeá-la.
Diante da própria tragédia pessoal, “Manoela” passa o dia sentada sobre um sofá completamente sujo e destruído, no quintal de casa. Isso quando não chove. Para voltar ao interior do imóvel, ela depende da ajuda de vizinhos, que sempre estão por perto. Mas ela prefere mesmo se manter na luz. A casa, ainda sem energia elétrica, é um mundo de escuridão. Quase nada se enxerga ali. E as noites, são ainda mais escuras.
“Manoela” diz acreditar em Deus. E sempre faz as suas orações. Pede ao criador saúde para continuar os dias. A amiga Ivone solicita ajuda da comunidade. Ela gostaria que alguém cedesse um andador ou uma bengala. Hoje, a locomoção acontece com a ajuda de um simples cabo de vassoura.
O irmão Dário tem consciência de que a irmã também precisa de ajuda. A última vez que a viu foi a três meses. Na época, segundo ele, fez uma boa compra de mercado e deixou na casa. “Soube dias depois que roubaram tudo. O problema são as pessoas que se aproveitam dela”, destacou. Ele acredita que o seu caso seja de internação. “Ela bebe e fuma demais. E isso também vem debilitando ainda mais a sua saúde”, disse.
Dário diz que sua mãe e seu pai morreram há alguns anos. Eles tiveram quatro filhos. Trata-se de uma família simples, sem recursos financeiros. Um espelho da maior parte da sociedade brasileira. Desde cedo, os filhos aprenderam com os pais a trabalhar na lavoura, seguindo ensinamentos de labuta e honestidade. Mas a grana sempre foi curta demais. A bem da verdade, matavam e ainda matam, um leão por dia.
Mesmo não falando, “Manoela” consegue entender. E ela se emocionou diversas vezes durante o encontro. Principalmente, quando lembrava do passado. Um passado em que viveu intensamente, fazendo tudo o que queria. O futuro ela desconhece. Mas jamais imaginou ter um presente como o que vem vivendo, a sua própria tragédia pessoal.
Deixe seu comentário
Voltar