Pedro sofreu a maior tragédia de um homem

Pedro sofreu a maior tragédia de um homem
Família Maia, em foto da década de 70
Por: Dilmercio Daleffe


23 de fevereiro de 1975. Uma semana após o carnaval. Em Campo Mourão, sol intenso. Calor de quase 40 graus. Naquele domingo, após o almoço, o agricultor Pedro Maia pegou seis de seus dez filhos, e foi até a usina. Seria uma tarde de alegria. Refrescar-se nas águas do Lago Mourão. Juntos, iriam andar de barco. Além deles, outros amigos e familiares faziam companhia. Mas, o que seria um passeio, uma diversão, terminou em tragédia. Possivelmente, a maior de toda história da cidade. Naquele dia, quatro filhos de Pedro, morreram afogados.

Pedro era casado com Arminda Clara Martins. Tiveram dez filhos: Maria Alcione, Zoraide, Shirley, Emília, Pedro, Ruth, Zenaide, Juscelino, Maria Ana e Celso. Uma família pioneira na ainda empoeirada Campo Mourão. Viviam da agricultura. Tinham duas fazendas. E, numa época sem a correria de hoje, todos levavam a vida de modo sereno. Sem poucas possibilidades de diversão, o que restava eram as águas da usina. E, foi assim, que o pai decidiu melhorar a tarde das crianças. Era pra ser um dia especial. Mal sabia Pedro que, na mesma noite, ele seria uma das manchetes do Fantástico, da Globo.

A família saiu de casa por volta das 13h. Ao chegar à usina, só festa. Pedro havia levado Emília, Ruth, Zenaide, Juscelino, Maria Ana e Celso. Depois de muitas brincadeiras, a turma decidiu dar uma volta com o barco. O motor era novo. Queriam experimentar. Às 16 horas, subiram à embarcação Júlio Durski (piloto) e um filho. Além dos dois, outros cinco filhos de Pedro: Ruth, Zenaide, Juscelino, Celso e Maria Ana. Pedro e a filha, Emília, ficaram em terra. Todos a bordo, o passeio começou.

Tudo ia bem. Até uma lancha passar perto e provocar uma forte marola. Quase uma onda pequena. Foi o suficiente para o barco virar. Júlio conseguiu resgatar o filho. Maria Ana foi salva por pessoas que andavam com outro barco. E foi só. Ruth, 15, Zenaide, 13, Juscelino, 10, e Celso, 4, morreram afogados. Uma tragédia sem precedentes. Pedro, soube do naufrágio através de pescadores locais. E ficou atordoado, não tinha a quem recorrer. A cidade não possuía Corpo de Bombeiros. Quem chamar? A quem clamar ajuda?

E a ajuda veio. Mas da guarnição dos bombeiros de Maringá. Só que horas depois. Nada mais a se fazer. A não ser, encontrar os corpos. As buscas se concentraram durante toda a noite. Os soldados não mediram esforços. Enquanto mergulhavam, o fato era noticiado no Fantástico. Mesmo na penumbra, os corpos de Zenaide, Juscelino e Celso foram localizados. Estavam entre troncos de madeira e galhos. Metros abaixo da água, juntos. Os três, estavam abraçados. O dia clareou e Ruth não havia sido encontrada. Sem ter o que fazer, a família iniciou o velório.

Ali, próximo à entrada principal da Expresso Nordeste, na avenida Afonso Botelho, residia a família. Local onde três pequenos caixões foram colocados um ao lado do outro. Naquela segunda feira, 24 de fevereiro, Campo Mourão parou. Toda a cidade foi ao velório. Uma comoção jamais vista. Com tantas pessoas, as ruas ao redor foram fechadas. A tristeza era ainda mais atordoante porque faltava uma das crianças. Faltava mais um caixão. Quando o cortejo se preparava para sair, rumo à igreja, veio a notícia. O corpo de Ruth havia sido encontrado. A pé, familiares e populares seguiram com os, agora, quatro caixões até a Catedral. O enterro aconteceu às 17 horas. Mesmo com um dia de céu intensamente azul, o clima era cinza. Uma data a ser esquecida.

Passados 45 anos da tragédia, Dulce Boiko, neta de Pedro, e filha de Maria Alcione, não esquece aquele dia. Ela tinha nove anos na época. “Lembro como se fosse hoje. Estava indo à missa. Encontramos a caminhonete de meu avô em disparada. O paramos. E ele pediu ajuda. Disse ter matado os filhos”, lembra. Dulce disse ter olhado à caçamba do carro e ver quem estava faltando. Naquele instante, o chão parecia ter sumido. Foi um misto de medo. Vazio. Um terror diante das palavras do avô.

Maria Alcione já era casada. Tinha 26 anos. E não havia ido à usina. Era a mais velha dos outros nove irmãos. Conta que, no dia do velório, recebia as pessoas. O pai e a mãe, extremamente abalados, não tinham forças. Para nada. Foi o dia mais longo de sua vida. “Fiquei no velório o dia todo. O dia parecia que nunca mais acabaria”, disse. Sem direção e, psicologicamente, atordoado, Pedro precisava de ajuda. O primeiro passo foi esconder a arma que usava. “Tiramos a sua arma. Tínhamos medo que cometesse uma loucura. Que tirasse a própria vida”, lembra.

Nunca se viu tanta gente num enterro em Campo Mourão. Praticamente, toda a cidade compareceu. Eram muitos abraços para tentar, de alguma forma, minimizar a dor da família. Ainda na igreja, uma missa de corpo presente aconteceu. E ela foi muito dolorosa. Pedro, o homem forte, de olhos claros e que, até então nunca havia chorado, desmoronou. “Foi a primeira vez que o vi chorar”, conta Maria Alcione. E quem suportaria tamanha dor? Qual pai imaginaria enterrar, de uma só vez, quatro filhos?

PEDRO E ARMINDA

O tempo passou. Mas Pedro jamais foi o mesmo homem ativo de antes. Era um homem do campo. Não media esforços ao trabalho. Mas, depois da tragédia, a alegria parecia não mais o habitar. Começou a fazer péssimos negócios. Acabou sem as propriedades rurais. Mais tarde decidiu ir embora para Morretes. Depois, Antonina. Pra aquelas bandas, continuou o que sabia: agricultura. Mas era notável o desapego pelo dinheiro. Com ele, apenas a esposa e a filha, Maria Ana.

A filha conta que, depois do acidente, os pais foram morar no sítio, ainda em 1975. Tempos difíceis. Além da perda dos filhos, a geada negra acabou com o café. Maria Ana ficou um ano em Prudentópolis, na casa de Júlio. Retornou à Campo Mourão, mas o pai havia vendido o sítio e comprado uma chácara em Morretes. Como lá, não tinham casa, passaram a residir em Antonina. Depois de seis meses, Maria Ana foi morar com os dois.
O casal ficava sempre junto. Saiam cedo à chácara e voltavam no final do dia. Pedro sempre foi muito trabalhador. Cuidava bem da propriedade e, principalmente, de Arminda. Depois do acidente, ela adoeceu. Ficou muito deprimida, e chorava constantemente. Ela teria contado que só parou de chorar, quando teve um sonho com as crianças. Elas pediam para que parasse de chorar. Onde estavam, era muito bonito. Mas a sua tristeza as atrapalhava. Então, nunca mais chorou. Enquanto viveu, todos os dias, as seis horas, rezava um terço.

Maria Ana permaneceu com os pais um ano e meio em Antonina. Depois foi morar com a irmã Shirley, em Curitiba. No ano seguinte, os pais mudaram-se para Pinhais. “Meu pai, sempre preocupado com meus estudos, queria que cursasse uma faculdade. Como não passei no vestibular, fui trabalhar”, disse. Mas, pouco tempo depois, conseguiu se formar em Administração de Empresas. Pedro, adoeceu repentinamente. Ficou alguns dias na UTI. Faleceu em 12 de março de 1990, aos 86 anos. Seu corpo foi levado à Campo Mourão, como desejava. Arminda, sempre costurava. Gostava de fazer colchas de retalhos. Não gostava muito de falar sobre as coisas de casa com estranhos. A família a levou a uma psicóloga. Na verdade, apenas duas vezes. Voltou brava. Dizia que a profissional especulava sua vida. Pedro e Arminda brigavam muito. Mas se gostavam do mesmo tanto. Cuidaram um do outro. Até o fim.

Arminda nasceu em Muzambinho, nas Minas Gerais. Sempre foi serena. Calma. De uma prosa gostosa. Mas, depois da tragédia, ficou depressiva. Tinha a alma entristecida. Segundo a família, nunca reclamou de nada. Ela morreu em 16 de maio de 1995. Pedro, deixou a vida se culpando pelo acidente. Jamais se perdoou. Ele nasceu em Brodoski, no interior paulista. Terra do pintor Cândido Portinari. O casal se conheceu e casou em Londrina. Mais tarde, em 1952, vieram a Campo Mourão. Na cidade, constituíram uma família honrada. De trabalho. O Jardim Maia, bairro mourãoense, tem o nome em homenagem a Pedro.

SOBREVIVENTE

Maria Ana, a única sobrevivente dos irmãos, hoje com 52 anos, mora em Curitiba. Nunca casou. E ainda sofre as consequências do trauma vivenciado. Ela sempre cuidou dos pais, até que morressem. Dos dez irmãos, com exceção dos quatro mortos na usina, seis ainda vivem. Sobre o acidente, ela lembra ser um lindo dia de sol. Último domingo antes do início das aulas. Enquanto a família almoçava, naquele 23 de fevereiro, a mãe teria pedido ao pai que não levasse as crianças à beira d´água. Pedro, então em casa, almoçou e foi dormir um pouco, como fazia sempre após as refeições. Mas, comovido aos pedidos dos filhos, acordou e os levou à usina.

“Quando chegamos lá, ficamos brincando. No final do dia é que fomos dar uma volta de barco. Subimos todos na lancha. E, quando a embarcação fez a volta para retornar, seo Júlio disse: não se assustem, mas o a lancha vai virar", lembra ela. E o barco virou. Maria Ana diz ter ficado ao lado dele. “Por isso ele me segurou. Mas, como estava com o braço engessado, deve ter me soltado. Eu passei em algo e subi. Meu cabelo espalhou, e os rapazes que passavam com outro barco me salvaram”, revela.

Maria Ana, aos oito anos, ao ser resgatada, começou a vomitar. Já havia tomado água. Os homens perguntaram aonde estava o pai. “Eu apontei a chácara. E eles me levaram. Quando chegamos, me deixaram deitada. Passou um tempo e fomos embora. Eu, meu pai e minha irmã, Emília”, lembra. Ao chegar na casa da família, na cidade, a cena foi surreal. “Minha mãe foi ao nosso encontro. Perguntou pelos filhos. Meu pai contou o que tinha acontecido. Minha mãe enlouqueceu. Saiu gritando. Havia falado pra ele não nos levar à beira da água”, disse.

Atordoada, Arminda saiu descalça pela rua, gritando. Uma mãe em desespero. Neste momento, Maria Alcione chegou e levou Maria Ana à casa de uma amiga e, lá ela dormiu. “Quando acordei fui até a sala e estava passando a reportagem no Programa Fantástico. Eu falei, é mentira. Eles não morreram, e meu nome está errado”, contou Maria Ana. Afinal, ela acreditava que, quando chegasse em casa, encontraria todos os irmãos. No entanto, quando chegou, a casa já não era mais a mesma.

Toda aquela alegria das crianças, entrando e saindo, já não mais existia. Dias depois, ela foi à escola. Mas não conseguia ficar. Chorava muito. Perdeu o ano. Para Maria Ana, o dia mais triste de sua vida aconteceu quando chegou da escola. Jogou a lancheira cor de rosa com um desenho de trenzinho no sofá e foi até a cozinha. A casa tinha um fogão a lenha, sempre aceso. Sobre ele, a cena comum de uma cuque, arroz doce ou canjica. Neste dia, o fogão estava apagado. Não tinha nada em cima. A casa quieta. Doeu muito. A ficha começava a cair. Os irmãos não voltariam mais. E, a alegria dos pais, havia se perdido. Para sempre.

Shirley tinha 22 anos na época. No dia 23 de fevereiro, ela não havia ido à Usina. Foi à Maringá fazer um concurso para a Caixa Econômica Federal. Soube da notícia apenas à tarde, quando retornou. “Peguei as chaves do carro para ir até o lago. Mas o nosso vizinho, seo Américo, as tomou da minha mão. Ele me levou. Fiquei lá até de madrugada. Tinha esperança que os encontrassem vivos”, disse ela. Na manhã de segunda, Shirley foi com o pai até a Santa Casa reconhecer os corpos dos três irmãos. Depois disso, ainda foi a funerária e ao cemitério. As providências ao enterro, embora dolorosas, eram necessárias.

Por uma coincidência do destino, anos mais tarde, em 1979, Shirley teve uma filha, Paula. Ela nasceu no dia 23 de fevereiro, mesma data dos quatro afogamentos. Antes disso, em 1972, Shirley passou por outra tragédia. Ela estava no carro quando um acidente aconteceu. Na ocasião, morreram o seu marido e o seu cunhado.

Dos seis irmãos que estavam na usina, Emília era a maior. Tinha 18 anos. Ela cuidava dos menores enquanto os adultos andavam com o barco. No entanto, quando chegou a vez das crianças realizarem o passeio, Ruth não queria ir. Mas em seguida mudou de ideia, e foi. Emília preferiu ficar. Minutos depois de saírem, pescadores próximos começaram pedir socorro. Diziam que o barco das crianças tinha afundado. “Eu rezei uma Ave Maria e pedi pra Nossa Senhora trazer quem tivesse a missão. Foi o que conseguiu fazer no momento”, relata Emília.

Aos 17 anos, Pedro Maia chegou à usina logo após as notícias. Conta que foi um dia terrível. “Foi a última volta de barco. Subiram todos. Barco pequeno. Muita gente. Afundou”, lembra. Segundo ele, estava a cerca de 500 metros. No desespero, se atirou na água. Nadou até o local. Um dos primeiros a chegar. Não havia nada mais a fazer. Os irmãos não sabiam nadar. Mais tarde, mergulhou para tentar encontrar os corpos. “Mergulhei. Consegui chegar ao fundo. Mas a pressão me causou dor de cabeça. Voltei rápido a superfície”, lembra.

Já, de volta à cidade, dormiu. Quando acordou, a cidade havia parado. Muitas pessoas já na residência da família. Era o sinal de uma tragédia constituída. “Pensar no assunto representa sofrimento. Viver a angústia de presenciar um desastre familiar não é fácil. As consequências duram até hoje”, afirmou Pedro.

VÍTIMAS

Ruth morreu aos 15 anos. Era a sexta filha do casal. Uma menina bastante alegre. Tinha muitos amigos e gostava de festas. Era fã de Michel Jackson. Gostava de se reunir com os amigos no seu “clubinho particular”, sobre a garagem. Com os colegas, lá ouviam músicas. Era bonita. Vaidosa. E, sempre, liderou a sua turma.

Até os 13 anos, Zenaide gostava de brincar de casinha e cozinhar coisas diferentes, como tripa de galinha e bunda de tanajura. Possivelmente, hoje, seria uma chefe de cozinha. Muito alegre, tinha ataques de riso. “Lembro de uma vez no sítio que ela teve um ataque de riso de noite e riu por horas”, lembra a irmã, Maria Ana.

Juscelino viveu até os 10 anos. Gostava de afazeres domésticos. Acabava o almoço e logo dizia “eu lavo a louça”. Também fazia roupa para as bonecas. “Acredito que poderia ter sido um estilista”, disse Maria Ana. Era também curioso. Quando queria saber algo, pesquisava em livros. Foi assim que descobriu que era a água que fazia a geração de energia.

“O Celso era meu companheiro. Estávamos sempre juntos”, lembra Maria Ana. Ele gostava de corrida de Fórmula Um, no domingo. Não perdia uma única corrida. Quando perguntavam quem estava ganhando, dizia: "Ora, eu. E perguntávamos quem é você? Ele respondia, sou o Emerson Fittipaldi”. Nas brincadeiras com a irmã, ele era o motorista. “Viajamos pelo mundo inteiro nos carrinhos que ele fazia com as latas de óleo”. Celso, o caçula, morreu aos quatro anos. “Meus irmãos eram alegres, inteligentes. A casa era uma festa. Saudades eternas”.

Após 45 anos do caso, toda a família aceitou falar. Foi a primeira vez. Muitas irmãs choraram. Se emocionaram. Para elas, de certa forma, foi uma maneira de colocar a angústia para fora. Fugir um pouco da escuridão. Aliviar o coração. Afinal, o que aconteceu, não tem volta. É bem verdade que, consequências, aconteceram. Mas a vida jamais parou. Ela segue. E tem muito mais, ainda, a contar. Lembrar dos quatro irmãos mortos, para a família, agora, é uma espécie, de homenagem. Em tempo: Júlio Durski preferiu não falar sobre o fato. Aos 78 anos, mora em Prudentópolis. Tem problemas de audição. Ele ainda é atormentado com o que aconteceu. Se emocionou. Não conseguiu falar. Embora seja comum ao ser humano apontar culpados, a tudo e a todos, aqui, definitivamente, só existem vítimas.


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