UTI COVID: Quando morte e vida se entrelaçam

Terça feira, dia 05 de janeiro, 2021. Na UTI Covid da Santa Casa, 14 profissionais se dividem em diversas funções. Todos, com um só objetivo: salvar. São nove quartos com pacientes vitimados pelo vírus. Muitos intubados. Alguns, traqueostomizados. Enfermeiros, técnicos, médicos. Todos com prontuários às mãos. No computador, mais verificações. Exames de rotina. Análises. Visita aos enfermos. Novas doses de medicações. Drogas injetadas. Mais uma seringa de esperança. Lotação máxima. Mas, uma vaga acaba de abrir. A senhora, internada desde o dia 12, acaba de falecer. Tristeza nos corredores. Mais uma batalha perdida. Profissionais abalados.
O quadro descrito não é novidade. Ele acontece diariamente. Em manhãs, tardes e noites, na Santa Casa de Campo Mourão. São três turnos, ininterruptos. A ala é uma explosão de sentimentos. Por um lado, as vitórias, refletidas na alta dos pacientes. De outro, as perdas irreparáveis das vítimas. Além do cansaço físico, o psicológico é bastante afetado. Daí entra em cena psicólogos do hospital. Ana Maria Ribczuk é uma delas. Atua junto aos pacientes, familiares, como também, aos próprios profissionais. Uns ajudando aos outros. “Muitos aqui vem sofrendo uma carga emocional bastante severa”, disse. Em alguns casos, o afastamento é necessário.
Não é fácil a Ana Maria lidar com os opostos da vida. Mas, enfim, é sua missão. Segundo ela, o que se vê, nos nove quartos da UTI Covid, são pacientes extremamente debilitados. Vulneráveis. Inconscientes. Passaram a ser dependentes das mãos e sabedoria dos profissionais. E, porque não dizer, pela presença de Deus. Todos ali são submetidos a fraldas. E, sem locomoção, necessitam de fisioterapia, constantemente. Uma vez tendo alta hospitalar, a recuperação é lenta. E difícil.
A cena de pessoas vitimadas pela doença em seus leitos, é cruel demais. A bem da verdade, horrível de ser visto, contam os profissionais. E, em quase todas as conversas, ouve-se sobre a falta de consciência dos “aqui de fora”. “Nos próximos dias vão chegar muitas pessoas. Reflexo das festas e praias de fim de ano”, acredita a enfermeira Márcia Silvia Gouveia. Para ela, o mais difícil é ver a chegada de jovens infectados na enfermaria. Ela conta que já passou momentos difíceis no hospital. E que, cada dia, se resume num novo desafio.
Cada enfermo é observado dezenas de vezes ao dia. Na verdade, sempre existe alguém ao seu lado. De acordo com Fernanda Chiagla, enfermeira chefe da UTI Covid, cada paciente faz três exames por dia de gasometria arterial – exame de sangue para verificar se as trocas gasosas estão ocorrendo de maneira correta, e assim, avaliar a necessidade de oxigênio extra. Além disso, várias outras análises são regularmente realizadas. Não faltam remédios. Nem equipamentos de proteção individual. A equipe é unida. E, a cada dia, aprendendo mais com a doença.
MORTE
Um comunicado surge nos corredores. Uma paciente acaba de morrer. Aos 81, ela não resistiu a infecção. A comoção é geral. Ela ocupava um dos leitos desde o dia 12 de dezembro. A família é comunicada para ir ao hospital. Lá, numa pequena sala, a notícia é revelada. Ana Maria e outros profissionais dão o suporte à família. Lágrimas são despejadas. Uma dor sem fim. O ritual prossegue. Agora, com o reconhecimento do corpo. Alguns minutos e os parentes saem. Retiram as roupas de segurança, e deixam o setor. O corpo é embalado por um plástico. E entregue a agentes funerários. O prontuário da paciente, chegou ao fim.
Ali, muitas são as histórias de tristezas. Ana Maria conta que, há alguns dias, uma jovem gritava e chorava do lado externo do hospital. Queria ver o pai. Ele estava intubado na Covid. O apelo da moça foi atendido. Vestida com os critérios sanitários hospitalares, visitou o genitor. Não mais que três minutos. Foi o suficiente para se despedir. Ele morreu no dia seguinte. Em outra situação, um jovem visitou a mãe. Naquele instante, foi a última vez. Ela morreu em sua frente. “Antes de sermos profissionais, somos seres humanos. Essas situações mexem muito com a gente”, disse a psicóloga.
Os corredores da UTI, às vezes, se assemelham a uma expedição interplanetária. São tantos equipamentos de proteção que os profissionais parecem astronautas. Difícil até reconhecer cada um. Mas uma medida necessária. E, mesmo com tantos cuidados, alguns já foram infectados. Embora não se possa afirmar que a contaminação tenha sido interna.
Num dos quartos, uma aglomeração. Oito profissionais em volta de uma paciente intubada. Convocados para desvirá-la, numa operação chamada “posição de prona” – quando o enfermo deita de bruços, promovendo modificações fisiológicas na distribuição do ar pelo pulmão e na dinâmica do tórax. A técnica resulta em menor estresse e tensão sobre o pulmão e uma maior conexão entre a ventilação e o sangue -. Sincronizados, a chefe da equipe combina os movimentos. “1, 2, 3. Pra esquerda. 1, 2,3 de lado. 1,2, 3 deita. 1,2, 3, puxa”. Com todo cuidado, a enferma é desvirada.
Há alguns dias, a ala estava com 19 doentes. Além do limite. Sem poder receber mais vítimas do corona, outros pacientes tiveram que ser remanejados a cidades como Umuarama e Paranavaí. Ana Maria explica que a doença é bastante instável. Pessoas que pareciam receber alta, vieram a óbito. Enquanto outras, que se encaminhavam a um quadro irreversível, sobreviveram. “Cada organismo reage de uma maneira. E essas instabilidades nos deixam perplexos”, disse.
SENTIMENTOS
“O Rafael teve alta”, grita uma enfermeira, em prantos de felicidade. Ela falava sobre um paciente que passou pela enfermaria. O caso se agravou. Foi a UTI. Depois retornou à enfermaria. E, agora, teve alta. Foi salvo. A profissional revelou ali, naquele momento, a satisfação em colaborar para a vítima voltar ao mundo externo. “Nós nos apegamos aos pacientes. Passamos ter uma relação de afinidade. E isso é refletida nas alegrias, quanto nas tristezas”, diz Ana Maria. Por alguns segundos, notou-se uma lágrima da enfermeira. Alegria.
Sueli está com 55 anos. Foi diagnosticada com Covid. Passou dois dias na enfermaria da Santa Casa. Mas, por precaução, foi encaminhada à UTI. Ontem, ela estava consciente. E sorrindo. “Vou sair com a graça de Deus”, disse, emocionada. Sueli tem um filho, também vitimado pelo vírus. Mas se recuperou. O caso dela preocupava mais em virtude da pressão alta e do diabetes. Mas, pelo que tudo indica, em alguns dias, estará em casa. “Tinha medo. Medo de tudo. Até de ficar sozinha. Mas a equipe daqui é maravilhosa. Além de cuidar de mim, sempre recebi uma palavra de conforto. De carinho. Agora, o pior já passou. Vou embora. Quero ser feliz”, disse.
Cada paciente da UTI tem atenção de vários profissionais. A começar com os médicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros. Até chegar a nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, laboratoristas e zeladores. Sim, zeladores. São eles os responsáveis pela constante higienização de todo o setor. Principalmente, nos casos de óbitos. Praticam uma sistemática de desinfecção por nove vezes. Trabalho árduo, mas necessário. Uma delas é Viviane Rodrigues. Há dez meses trabalha na UTI. E, quando recebeu a proposta de emprego, jamais teve medo. “Fazemos com muito carinho. Temos uma função importante aqui”, disse.
Os profissionais fazem até mais do que devem. Muitas vezes, confortam os pacientes. De uma certa forma, diminuem a solidão. Em outras, fazem chamadas de vídeo através do celular. Tudo, para aproximá-los da família. Mas eles também são paparicados. Muitas são as cartinhas recebidas por crianças da região. Uma a uma, foram colocadas na parede. Dão forças e se referem a turma, como heróis.
Não existem relatórios sobre o tempo médio de internação na UTI. Cada caso é um caso. Organismos reagem de maneiras diferentes. Mas, até ontem, um senhor já completava dois meses ali. E a dedicação dos profissionais, não parava. De repente surge um apelo: “Fala que a gente é bonito”, brinca um enfermeiro, já fora da UTI, ao repórter. Mesmo entranhado no computador, tirou um segundo para descontrair. E como isso faz bem a turma. Embora concentrados, é visível o ânimo e a determinação. Assim como as críticas à população. “Se todos pudessem ver o que se passa aqui, certamente, as pessoas iriam se cuidar mais”, disse um técnico. Para ele, sem conscientização, a guerra demorará a ser vencida.
Uma outra voz questionadora surge baixinha: “Você já imaginou parar aqui. É muito triste né”? Além do sofrimento das vítimas, os que vão a óbito morrem sem a presença da família. Uma ida sem compaixão. Sem despedidas. A contar, com um enterro cruel. Com caixão lacrado. Sem chances para uma última lembrança. Uma médica definiu a situação: “O vírus é bastante estrategista. Permanece sete dias sem se manifestar. Mas quando se vê, já é tarde demais. Outros contágios foram feitos. Para piorar, quando surge a vacina, ele se transforma. Temos que nos cuidar ao máximo”, disse. Em tempo, fica a pergunta: quantas camas mais da UTI serão utilizadas?
NOSSA REALIDADE
“Temos que nos manter focados em prestar o melhor atendimento aos nossos pacientes. Cada vitória é alento ao coração. Somos preparados para salvar vidas. A carga é pesada e não gostamos de perder pacientes. Mas, infelizmente, perdemos. Porém, sempre podemos confortar e acalentar o coração dos familiares. O nosso psicológico precisa se manter firme. No entanto, com fé e a graça de Deus, venceremos essa e muitas outras batalhas que virão. Tenho muito orgulho do trabalho e da equipe que temos na Santa Casa”, enfatizou Wanderlister Duque Tavares, cirurgião geral e médico plantonista da UTI Covid do Hospital Santa Casa.
*Os nomes dos pacientes são fictícios, em respeito às suas privacidades e a ética do hospital.
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